O Homem, O Bicho

Visitando a maravilhosa exposição "Vanguarda brasileira dos anos 1960 – Coleção Roger Wright", na Pinacoteca do Estado de São Paulo, me deparei com uma das esculturas da série "Bichos", de Lygia Clark, obra que 56 anos depois de sua criação foi o centro de uma grande polêmica justamente por seu objetivo principal, a manipulação (neste caso, em todos os sentidos da palavra).



Perguntei ao segurança da sala (mesmo já sabendo a resposta) se eu poderia tocar na obra e interagir com ela. A resposta foi um "não" quase assustado e ele não tirou os olhos de mim durante todo o tempo que permaneci na exposição.



Manipular significa usar, manusear, dar forma, alterar, modificar. Mas também significa influenciar, controlar, inventar, forjar, falsificar. O desejo de manipular manifesta-se nos seres humanos desde o Homo Habilis, nosso ancestral que viveu a 2,2 milhões de anos atrás e que descobriu que podia manipular elementos e criar ferramentas.
A manipulação de elementos da natureza provavelmente foi um dos mais signiticativos passos na evolução do homem e o Homo Sapiens, que surgiu a apenas 350 mil anos, elevou esse dom de manipular a um outro patamar. 
Com a capacidade de raciocínio abstrato, da linguagem e vivendo em comunidades, ele deixa de manipular apenas o ambiente para controlar também outros seres vivos e principalmente seus iguais. Manipular tornou-se então uma forma de poder. Para o bem e para o mal.



Ao criar a série de esculturas Bichos, em 1961, Lygia Clark - um dos principais nomes do nosso modernismo - torna-se a primeira artista brasileira a fazer uma obra de arte interativa. O objetivo era justamente tirar o público do confortável confinamento de espectador, colocando-o com agente modificador da obra.
Composta por formas geométricas simples unidas por dobradiças, as esculturas da série "Bichos" podem assumir as mais variadas formas dependendo da vontade de quem as manipula. 
Em 1961 Lygia já era considerada uma das maiores artistas brasileiras e as esculturas da série "Bichos" foram adquiridas por colecionadores importantes e exibidas nos maiores museus e galerias do mundo, mas sem a possibilidade de interatividade do público. O que também não deixa de ser uma forma de manipulação.



O coreógrafo Wagner Schwartz, inspirado por essa limitação artística imposta à obra e objetivando resgatar a proposta de Lygia Clark, criou a performance "La Bête", usando seu próprio corpo nú no lugar da escultura, para ser manipulado pelo público e também mostrando como nós também somos manipulados de muitas e muitas formas diferentes.
A nudez de Schwartz era uma referência a vulnerabilidade da obra e do ser humano, mas foi transformada em uma ameaça por grupos conservadores e moralistas, que criaram e viralizaram falsas notícias com o objetivo de manipular a opinião pública contra a liberdade de expressão artística.



Contudo, toda a polêmica gerada mostrou a atualidade da obra de Lygia Clark e a necessidade de discutir o tema "manipulação". Se em pleno século XXI a nudez pura e simples, sem nenhuma conotação erótica ou sexual, ainda causa tanta histeria, fica nítido o retrocesso cultural/intelectual da nossa sociedade, nos levando de volta à nossa condição mais primitiva, a do homem bicho, pré-histórico.



A proibição de tocar na obra, como foi a concepção original pela artista, não só torna a obra incompleta como também é prova desse retrocesso.




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